top of page
O TEATRO E A PESTE

 

Os arquivos da cidadezinha de Cagliari, na Sardenha, contêm o relato de um fato histórico e incrível.
 

Numa noite de fins de abril ou começo de maio de 1720, cerca de vinte dias antes da chegada a Marselha do navio Grand-Saint-Antoine, cuja atracação coincidiu com a mais maravilhosa explosão de peste que tenha feito borbulhar as memórias da cidade, Saint-Rémys, vice-rei da
Sardenha, a quem as reduzidas responsabilidades de monarca talvez tivessem sensibilizado aos vírus mais perniciosos, teve um sonho particularmente aflitivo: viu-se pestífero e viu a peste arrasar seu minúsculo Estado.

 

Sob a ação do flagelo, os quadros da sociedade se liqüefazem. A ordem desmorona. Ele assiste a todos os desvios da moral, a todas as derrocadas da psicologia, escuta em si mesmo o murmúrio de seus humores, corroídos, em plena destruição, e que, num vertiginoso desperdício de matéria, tornam-se densos e aos poucos metamorfoseiam- se em carvão. Será tarde demais para conjurar o flagelo? Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade.


Ele desperta. Saberá mostrar-se capaz de dissipar todos os boatos de peste que estão correndo e os miasmas de um vírus vindo do Oriente.
 

Um navio que partiu há um mês de Beirute, o Grand- Saint-Antoine, pede licença para atracar e desembarcar. E então ele dá a ordem louca, a ordem considerada delirante, absurda, imbecil e despótica pelo povo e por todo
o seu círculo. Rapidamente manda para o navio, que presume contaminado, a barca do piloto e alguns homens com a ordem para que o Grand-Saint-Antoine vire de bordo imediatamente e se faça à vela para longe da cidade, sob pena de ser afundado a tiros de canhão. A guerra contra a peste. O autocrata atacava de frente.

 

É preciso, de passagem, observar a força especial da influência que aquele sonho exerceu sobre ele, pois ela lhe permitiu, apesar dos sarcasmos da multidão e do ceticismo de seu círculo, perseverar na ferocidade de suas ordens, passando com isso não apenas por cima do direito das pessoas como também sobre o mais simples respeito pela vida humana e sobre todos os tipos de convenções nacionais ou internacionais que, diante da morte, deixam de vigorar.
 

Seja como for, o navio continuou seu caminho, chegou a Livorno e entrou no porto de Marselha, onde lhe foi permitido desembarcar.
 

Os serviços públicos de Marselha não guardaram lembrança do que aconteceu com sua carga de pestíferos. Sabe-se mais ou menos o que aconteceu com os marinheiros de sua tripulação, que não morreram todos de peste e se espalharam por diversos lugares.
 

O Grand-Saint-Antoine não levou a peste a Marselha. Ela já estava lá. E num período de particular recrudescência. Mas já se tinha conseguido localizar seus focos.
 

A peste trazida pelo Grand-Saint-Antoine era a peste oriental, o vírus original, e é de sua chegada e de sua difusão pela cidade que datam o lado particularmente atroz e o alastramento generalizado da epidemia.
 

E isso inspira alguns pensamentos.
 

A peste, que parece reativar um vírus, era capaz de provocar sozinha devastações sensivelmente igualitárias, pois, de toda a tripulação, o capitão foi o único a não contrair a peste e, por outro lado, parece que os pestíferos recém-chegados nunca estiveram em contato direto com os outros, mantidos em zonas fechadas. O Grand-Saint-Antoine, que passa ao alcance da voz de Cagliari, na Sardenha, não deposita a peste nessa cidade, mas o vice-rei recebe, em sonho, algumas emanações dela. Não se pode negar que entre ele e a peste tenha se estabelecido uma comunicação ponderável, embora sutil, e é muito fácil acusar, na comunicação de uma doença como essa, o contágio por simples contato.
 

Mas essas relações entre Saint-Rémys e a peste, bastante fortes para se liberarem em imagens em seu sonho, não são suficientemente fortes, no entanto, para provocarem nele o aparecimento da doença.
 

Seja como for, a cidade de Cagliari, sabendo algum tempo depois que o navio escorraçado de suas costas pela vontade despótica do príncipe míraculosamente iluminado tinha sido a causa da grande epidemia de Marselha, registrou o fato em seus arquivos, que qualquer um pode consultar.
 

 

A peste de 1720 em Marselha ofereceu-nos as únicas descrições ditas clínicas que temos do flagelo.
 

Mas pode-se perguntar se a peste descrita pelos médicos de Marselha era de fato a mesma de 1347 em Florença, de onde saiu o Decamerão. A história, os livros sagrados, entre os quais a Bíblia, alguns antigos tratados médicos descrevem, do exterior, todos os tipos de peste, dos quais parecem ter retido menos as características mórbidas do que a impressão desmoralizante e fabulosa que elas deixaram nos espíritos. Talvez estivessem com a razão. A medicina teria mesmo muita dificuldade para estabelecer uma diferença fundamental entre o vírus que matou Péricles às portas de Siracusa, se é que a palavra vírus é de fato alguma coisa além de uma simples facilidade verbal, e aquele que manifesta sua presença na peste
descrita por Hipócrates, que alguns tratados recentes citam como uma espécie de falsa peste. E, para esses mesmos tratados, a única peste autêntica seria a que vem do Egito, proveniente dos cemitérios descobertos pelas secas do Nilo. A Bíblia e Heródoto concordam em registrar a aparição fulgurante de uma peste que dizimou, numa noite, os cento e oitenta mil homens do exército assírio, com isso salvando o império egípcio. Sendo isso verdade, seria necessário considerar o flagelo como o instrumento direto ou a materialização de uma força inteligente em estreita relação com o que chamamos de fatalidade.


E isso com ou sem o exército de ratos que naquela noite se lançou sobre as tropas assírias, cujos arreios ele roeu em algumas horas. Esse fato deve ser relacionado com a epidemia que eclodiu no ano 660 a.C. na cidade
sagrada de Mekao, no Japão, por ocasião de uma simples
mudança de governo.

 

A peste de 1502 na Provença, que deu a Nostradamus a oportunidade de exercer pela primeira vez suas faculdades de curandeiro, coincidiu também na ordem política com as reviravoltas mais profundas, quedas ou mortes de reis, desaparecimento e destruição de províncias, terremotos, fenômenos magnéticos de todo tipo, êxodos de judeus, que precedem ou sucedem, na ordem política ou cósmica, cataclismos e destruições que aqueles que os provocam são estúpidos demais para prever e não suficientemente perversos para desejar seus efeitos.
 

Sejam quais forem as divagações dos historiadores ou da medicina sobre a peste, creio que é possível concordar quanto à ideia de uma doença que seria uma espécie de entidade psíquica, e que não seria veiculada por um vírus. Se quiséssemos analisar de perto todos os fatos de contágio de peste que a história ou as Memórias nos apresentam, seria difícil isolar um único caso verdadeiramente comprovado de contágio por contato, e o exemplo citado por Boccaccio, de porcos que teriam morrido por cheirar lençóis em que se envolveram pessoas empestadas, só serve para demonstrar uma espécie de afinidade misteriosa entre a carne de porco e a natureza da peste, o que também teria de ser analisado com muito rigor.
 

Não existindo a ideia de uma verdadeira entidade mórbida, há formas que o espírito pode provisoriamente aceitar a fim de caracterizar alguns fenômenos, e parece que o espírito pode concordar com uma descrição da peste tal como a que segue.
 

Antes de se caracterizar qualquer mal-estar físico ou psicológico, espalham se pelo corpo manchas vermelhas, que o doente só percebe, de repente, quando se tornam escuras. Ele nem tem tempo de se assustar, e sua cabeça
já começa a ferver, a tornar-se gigantesca pelo peso, e ele cai. Então, é tomado por uma fadiga atroz, a fadiga de uma aspiração magnética central, de suas moléculas cindidas em dois e atraídas para sua aniquilação. Seus humores descontrolados, revolvidos, em desordem, parecem galopar através de seu corpo. Seu estômago se embrulha, o interior de seu ventre parece querer sair pelo orifício dos dentes. Seu pulso, que ora diminui até tornar-se uma sombra, uma virtualidade de pulso, ora galopa, segue a efervescência
de sua febre interior, a turbulenta desordem de seu espírito. O pulso batendo através de golpes precipitados como seu coração, que se torna intenso, pleno, barulhento; o olho vermelho, incendiado e depois vítreo; a
língua que sufoca, enorme e grossa, primeiro branca, depois vermelha e depois preta, como que carbonífera e rachada, tudo isso anuncia uma tempestade orgânica sem precedentes. Logo os humores trespassados como a terra pelo raio, como um vulcão trabalhado pelas tempestades subterrâneas, procuram a saída para o exterior. No meio das manchas criam-se pontos mais ardentes, ao redor desses pontos a pele se ergue em pelotas como bolhas de ar sob a epiderme de uma lava, e essas bolhas são cercadas
por círculos, o último dos quais, como um anel de Saturno ao redor do astro em plena incandescência, indica o limite extremo de um bubão.

O corpo fica cheio de bubões. Mas, assim como os vulcões têm seus lugares eleitos sobre a terra, os bubões também têm lugares eleitos no corpo humano. A dois ou três dedos da virilha, sob as axilas, nos locais preciosos
onde glândulas ativas realizam fielmente suas funções, aparecem bubões, através dos quais o organismo descarrega ou sua podridão interior ou, conforme o caso, sua vida. Uma conflagração violenta e localizada num ponto indica na maioria das vezes que a vida central nada perdeu
de sua força e que uma remissão do mal ou mesmo sua cura é possível. Assim como o cólera branco, a peste mais terrível é a que não divulga suas feições.

 

Aberto, o cadáver do pestífero não mostra lesões. A
vesícula biliar, encarregada de filtrar os dejetos entorpecidos e inertes do organismo, fica inflada, quase estourando, cheia de um líquido escuro e pegajoso, tão compacto que lembra uma matéria nova. O sangue das artérias, das veias, também é preto e pegajoso. O corpo fica
duro como pedra. Nas paredes da membrana estomacal parecem ter despertado inúmeras fontes de sangue. Tudo indica uma desordem fundamental das secreções. Mas não há nem perda nem destruição de matéria, como na lepra ou na sífilis. Os próprios intestinos, lugar dos distúrbios mais sangrentos, onde as matérias atingem um grau inusitado
de putrefação e petrificação - os intestinos não estão organicamente atacados. A vesícula biliar, de onde é preciso quase arrancar o pus endurecido, como em alguns sacrifícios humanos, com uma faca afiada, um instrumento de obsidiana, vítreo e duro - a vesícula biliar está hipertrofiada e quebradíça em alguns lugares, mas intacta, sem lhe faltar nenhum pedaço, sem lesão visível, sem matéria perdida.

No entanto, em certos casos os pulmões e o cérebro
lesados ficam escuros e gangrenados. Os pulmões amolecidos, fragmentados, desfazem-se em pedaços de uma matéria preta qualquer e o cérebro está fundido, gasto, pulverizado, reduzido a pó, desagregado numa espécie de pó de carvão preto.

 

Daí, devem-se destacar duas observações importantes: a primeira é que as síndromes da peste dispensam a gangrena dos pulmões e do cérebro, o pestífero não apresenta apodrecimento de nenhum de seus membros. Sem subestimá-la, o organismo não requer a presença de uma gangrena localizada e física para determinar sua própria morte.
 

A segunda observação é que os dois únicos órgãos realmente atingidos e lesados pela peste, o cérebro e os pulmões, são os que dependem diretamente da consciência e da vontade. Podemos impedir-nos de respirar ou de pensar, podemos precipitar nossa respiração, ritmá-la à
vontade, torná-la voluntariamente consciente ou inconsciente, introduzir um equilíbrio entre os dois tipos de respiração: o automático, que está sob as ordens diretas do sistema simpático, e o outro, que obedece aos reflexos do cérebro tornados conscientes.

 

Também podemos precipitar, tornar mais lento e ritmar o pensamento. Podemos regulamentar o jogo inconsciente do espírito. Não podemos dirigir a filtragem dos humores pelo fígado, a redistribuição do sangue através do organismo pelo coração e pelas artérias, controlar a digestão, parar ou apressar a eliminação das matérias do intestino. A peste, portanto, parece manifestar sua presença nos lugares, afetar todos os lugares do corpo, todas as localizações do espaço físico, em que a vontade humana, a consciência e o pensamento estão prestes e em via de se manifestar.
 

 

Em 1880 e poucos, um médico francês chamado Yersin, que estuda os cadáveres de indochineses mortos de peste, isola um desses cabeçudos de crânio arredondado, rabo curto, que só são visíveis com microscópio, e chama aquilo de micróbio da peste. A meu ver, trata-se apenas de um elemento material menor, infinitamente menor que surge num momento qualquer do desenvolvimento do vírus, mas que em nada explica a peste. E eu preferiria que esse doutor me dissesse por que todas as grandes pestes, com ou sem vírus, têm uma duração de cinco meses, após a qual sua virulência diminui, e como aquele embaixador turco que passava pelo Languedoc, por volta do fim de 1720, conseguiu traçar uma espécie de linha que, passando por Avignon e Toulouse, chegava a Nice e Bordeaux, como limite extremo do desenvolvimento geográfico do flagelo. Os acontecimentos mostraram que ele estava certo.
 

De tudo isso resulta a fisionomia espiritual de um mal cujas leis não é possível determinar cientificamente e cuja origem geográfica seria tolice tentar determinar, pois a peste do Egito não é a do Oriente, que não é a de Hipócrates, que não é a de Siracusa, que não é a de Florença, a Peste Negra, à qual a Europa da Idade Média deve seus cinquenta milhões de mortos. Ninguém pode dizer por que a peste atinge o covarde que foge e poupa o dissoluto que se satisfaz sobre os cadáveres. Por que o afastamento, a castidade, a solidão nada podem fazer contra os efeitos do flagelo e por que um certo grupo de debochados que se isolou no campo, como Boccaccio com dois companheiros bem equipados e sete devotas libertinas, pode esperar tranquilamente pelos dias quentes, quando a peste se retira; e por que num castelo próximo, transformado em cidadela fortificada com um cordão de homens armados impedindo a entrada, a peste transforma toda a guarnição e os ocupantes em cadáveres e poupa os homens armados, os únicos expostos ao contágio. E quem pode explicar o fato de os cordões sanitários estabelecidos com grandes reforços de tropas, por Mehmet Ali, ao final do século passado, por ocasião de uma recrudescência da peste egípcia, terem se mostrado eficazes na proteção dos conventos, escolas, prisões e palácios; e por que muitos focos de uma peste que tinha todas as características da peste oriental puderam irromper de repente na Europa da Idade Média em lugares sem qualquer contato com o Oriente.
 

É com essas estranhezas, esses mistérios, contradições e aspectos que se deve compor a fisionomia espiritual de um mal que corrói o organismo e a vida até a ruptura e o espasmo, como uma dor que, à medida que cresce
em intensidade e se aprofunda, multiplica seus acessos e suas riquezas em todos os círculos da sensibilidade.

 

Mas dessa liberdade espiritual com a qual a peste se desenvolve, sem ratos, sem micróbios e sem contatos, pode-se extrair o jogo absoluto e sombrio de um espetáculo que tentarei analisar.
 

Estabelecida a peste numa cidade, seus quadros regulares desmoronam, não há mais limpeza pública, nem exército, nem polícia, nem prefeitura; acendem-se fogueiras para queimar os mortos, conforme a disponibilidade de braços. Cada família quer ter sua fogueira. Depois a madeira, o lugar e o fogo escasseiam, há lutas entre famílias ao redor das fogueiras, logo seguidas por uma fuga geral, pois os cadáveres já são em número excessivo. Os mortos já atravancam as ruas, em pirâmides instáveis que animais roem aos poucos. Seu mau cheiro sobe pelo ar como uma labareda. Ruas inteiras são bloqueadas pelo amontoamento dos mortos. É então que as casas se abrem, que pestíferos delirantes, com os espíritos carregados de imaginações pavorosas, espalham-se gritando pelas ruas.

O mal que lhes corrói as vísceras, que anda por seu organismo inteiro, libera-se em jorros através do espírito. Outros pestíferos que, sem bubões, sem dores, sem delírios e sem sangramentos, observam-se orgulhosamente em espelhos, sentindo-se explodir de saúde, caem mortos, com a bacia nas mãos, cheios de desprezo pelos outros pestíferos.
 

Sobre os riachos sangrentos, espessos, nauseabundos, cor de angústia e de ópio que brotam dos cadáveres passam estranhas personagens vestidas de cera, com narizes compridos, olhos de vidro e montadas em uma espécie de sandálias japonesas, feitas com um arranjo duplo de tabuinhas de madeira, uma horizontal em forma de sola e a outra vertical, que as isolam dos humores infectos; elas passam salmodiando litanias absurdas, cuja virtude não as impede de submergir por sua vez no braseiro. Esses médicos ignaros só mostram seu medo e sua puerilidade.
 

Nas casas abertas, a ralé imunizada, ao que parece, por seu cúpido frenesi, penetra e rouba riquezas que ela sente que lhe serão inúteis. E é então que se instala o teatro. O teatro, isto é, a gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente.

Os últimos vivos se exasperam: o filho, até então submisso e virtuoso, mata o pai; o casto sodomiza seus parentes. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro aos punhados pela janela. O herói guerreiro incendeia a cidade por cuja salvação outrora se sacrificou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários. Nem a ideia da ausência de sanções nem a da morte próxima bastam para motivar atos tão gratuitamente absurdos por parte de pessoas que não acreditavam que a morte fosse capaz de acabar com tudo. E como explicar esse aumento de febre erótica entre pestíferos curados que, em vez de fugir, ficam onde estão, tentando extrair uma volúpia condenável de moribundos ou mesmo mortos, meio esmagados pelo amontoado de cadáveres onde o acaso os alojou.
 

Mas se é preciso um flagelo maior para provocar o surgimento dessa gratuidade frenética e se esse flagelo chama-se peste, talvez se pudesse procurar saber, em relação à nossa personalidade total, a que equivale essa gratuidade. O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em si todos os estigmas de um mal absoluto e quase abstrato, é idêntico ao estado do ator integralmente penetrado e transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspecto físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu.
 

Entre o pestífero que corre gritando em busca de suas imagens e o ator que persegue sua sensibilidade; entre o vivo que se compõe das personagens que em outras circunstâncias nunca teria pensado em imaginar, e que as
realiza no meio de um público de cadáveres e de alienados delirantes, e o poeta que inventa personagens intempestivamente e as entrega a um público igualmente inerte ou delirante, há outras analogias que explicam as únicas verdades que importam e que põem a ação do teatro e a
da peste no plano de uma verdadeira epidemia. 

 

Enquanto as imagens da peste em relação com um poderoso estado de desorganização física são como os derradeiros jorros de uma força espiritual que se esgota, as imagens da poesia no teatro são uma força espiritual que começa sua trajetória no sensível e dispensa a realidade. Uma vez lançado em seu furor, é preciso muito mais virtude ao ator para impedir-se de cometer um crime do que coragem ao assassino para executar seu crime, e é aqui que, em sua gratuidade, a ação de um sentimento no teatro surge como algo infinitamente mais válido do que a ação de um sentimento realizado.
 

Diante do furor do assassino que se esgota, o furor do ator trágico permanece num círculo puro e fechado. O furor do assassino realizou um ato, ele se descarrega e perde contato com a força que o inspira mas que não mais o alimentará. Esse furor assumiu agora uma forma, a do
ator, que se nega à medida que se libera, se funde na universalidade. 

 

Se quisermos admitir agora a imagem espiritual da peste, consideraremos os humores perturbados do pestífero como sendo a face solidificada e material de um distúrbio que, em outros planos, equivale aos conflitos, às lutas, aos cataclismos e débâcles que os acontecimentos nos trazem. E, assim como não é impossível que o desespero inútil e os gritos de um alienado num asilo causem a peste, por uma espécie de reversibilidade de sentimentos e de imagens, do mesmo modo pode-se admitir que os acontecimentos exteriores, os conflitos políticos, os cataclismos naturais, a ordem da revolução e a desordem da guerra, ao passarem para o plano do teatro, se descarregue na sensibilidade de quem os observa com a força
de uma epidemia. 

 

Santo Agostinho em A Cidade de Deus acusa essa semelhança de ação entre a peste que mata sem destruir órgãos e o teatro que, sem matar, provoca no espírito não apenas de um indivíduo, mas de um povo, as mais misteriosas alterações.
 

"Sabei", diz ele, "vós que o ignorais, que esses jogos cênicos, espetáculos de torpezas, não foram estabelecidos em Roma pelos vícios dos homens, mas por ordem de vossos deuses. Seria mais razoável prestar homenagens divinas a Cipião* do que a deuses assim; claro, eles não valiam o pontífice que tinham!... 

 

Para apaziguar a peste que matava os corpos, vossos deuses exigem em sua honra esses jogos cênicos, e vosso pontífice, querendo evitar a peste que corrompe as almas, opõe-se à construção do próprio palco. Se ainda vos restam alguns lampejos de inteligência para preferirdes a alma ao corpo, escolhei quem merece vossas adorações; pois a astúcia dos Espíritos maus, prevendo que o contágio cessaria nos corpos, aproveitou alegremente a ocasião para introduzir um flagelo muito mais perigoso, pois atinge não os corpos, mas os costumes. De fato, tal é a cegueira, tal é a corrupção produzida pelos espetáculos na alma que, mesmo nestes últimos tempos, aqueles que têm essa paixão funesta, que escaparam ao saque de Roma e se refugiaram em Cartago, passavam o dia no teatro, delirando, cada um mais que o outro, pelos histriões."
 

É inútil dar as razões exatas desse delírio comunicativo. Mais valeria procurar as razões pelas quais o organismo nervoso esposa, ao fim de algum tempo, as vibrações da música mais sutil até extrair delas uma espécie de
modificação durável. Antes de mais nada, importa admitir que, como a peste, o jogo teatral seja um delírio e que seja comunicativo.
 

O espírito acredita no que vê e faz aquilo em que acredita: esse é o segredo do fascínio. E santo Agostinho não coloca em dúvidas nem por um instante, em seu texto, a realidade desse fascínio.
 

No entanto, há certas condições a serem buscadas para fazer nascer no espírito um espetáculo que o fascine; e esta não é uma simples questão de arte.
 

Ora, se o teatro é como a peste, não é apenas porque ele age sobre importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se que esse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde passa não é nada além de uma imensa liquidação.
 

Um desastre social tão completo, um tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em carne viva todos os poderes da natureza no momento em que ela está prestes a realizar algo essencial.
 

A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente
despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudámos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível;
pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados.
 

Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades.
 

Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heróica e difícil.
 

Assim é que em Annabella, de Ford, vemos, para nossa perplexidade, e desde que as cortinas se levantam, um ser lançado numa insolente reivindicação de incesto, e que emprega todo o seu vigor de ser consciente e jovem para proclamá-la e justificá-la.

Ele não vacila nem por um momento, não hesita nem um minuto; e com isso mostra o quanto contam pouco todas as barreiras que lhe poderiam ser opostas. É criminoso com heroísmo e é heróico com audácia e ostentação. Tudo o força nesse sentido e o exalta, nada tem a seu favor, a não ser a força de sua paixão convulsiva, à qual não deixa de corresponder a paixão também rebelde e igualmente heróica de Annabella.
 

"Choro", diz ela, "não por remorso, mas por medo de não conseguir saciar minha paixão." São ambos falsos, hipócritas, mentirosos pelo bem de sua paixão sobre-humana, que é reprimida e contida pelas leis mas que eles colocarão acima das leis.
 

Vingança por vingança e crime por crime. Quando os acreditamos ameaçados, encurralados, perdidos e estamos prestes a lamentar sua condição de vítimas, revelam- se prontos para devolver ao destino ameaça por ameaça e golpe por golpe.
 

Caminhamos com eles de excesso em excesso e de exigência em exigência. Annabella é presa, condenada por adultério, incesto, humilhada, insultada, arrastada pelos cabelos, e é grande nosso estupor ao ver que, longe de procurar uma escapatória, ela provoca ainda mais seu carrasco e canta numa espécie de heroísmo obstinado. É o absoluto da revolta, o amor sem tréguas e exemplar que nos faz, a nós espectadores, sufocar de angústia diante da ideia de que nada a conseguirá deter.
 

Se procuramos um exemplo da liberdade absoluta na revolta, a Annabella de Ford nos oferece esse poético exemplo ligado à imagem do perigo absoluto.
 

E quando acreditamos ter chegado ao paroxismo do horror, do sangue, das leis ultrajadas, da poesia enfim consagrada pela revolta, somos obrigados a ir ainda mais longe numa vertigem que nada pode deter. 

 

Mas no final, dizemo-nos, é a vingança, é a morte por tanta audácia e por um crime tão implacável. 

 

Pois bem, não. Giovanni, o amante, inspirado por um grande poeta exaltado, coloca-se acima da vingança, acima do crime, através de uma espécie de crime indescritível e apaixonado, acima da ameaça, acima do horror através de um horror ainda maior que desnorteia ao mesmo tempo as leis, a moral e os que ousam ter a audácia de se erigirem em justiceiros.
 

Trama-se engenhosamente uma armadilha, prepara-se um banquete em que, entre os convidados, estarão ocultos espadachins e esbirros, prontos a se jogarem sobre ele ao menor sinal. Mas esse herói acuado, perdido, e inspirado pelo amor, não deixará ninguém justiçar esse amor.
 

Vocês querem, ele parece dizer, a pele de meu amor, pois sou eu quem lhes jogará esse amor na cara, sou eu quem os aspergirá com o sangue desse amor a cuja altura vocês são incapazes de se elevar.
 

E ele mata sua amante e lhe arranca o coração, como que para se nutrir dele no meio de um banquete em que era a ele mesmo que os convivas esperavam poder devorar.
 

E, antes de ser executado, mata também seu rival, o marido da irmã, que ousou levantar-se contra esse amor, e o executa numa última luta que surge assim como seu próprio espasmo de agonia.
 

Como a peste, o teatro é portanto uma formidável convocação de forças que reconduzem o espírito, pelo exemplo, à origem de seus conflitos. E o exemplo passional de Ford nada mais é, percebe-se isso muito bem, do que o símbolo de um trabalho mais grandioso e absolutamente essencial.
 

A aterradora aparição do Mal que nos Mistérios de Elêusis se dava em sua forma pura, e era verdadeiramente revelada, corresponde ao tempo negro de certas tragédias antigas que todo teatro verdadeiro deverá reencontrar.
 

Se o teatro essencial é como a peste, não é por ser contagioso, mas porque, como a peste, ele é a revelação, a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente através do qual se localizam num indivíduo ou
num povo todas as possibilidades perversas do espírito. 

 

Assim como a peste, ele é o tempo do mal, o triunfo das forças negras que uma força ainda mais profunda alimenta até a extinção.
 

Há nele, como na peste, uma espécie de estranho sol, uma luz de intensidade anormal em que parece que o difícil e mesmo o impossível tornam-se de repente nosso elemento normal. E Annabella de Ford, como todo teatro verdadeiramente válido, está sob a luz desse estranho sol. Ela
se parece com a liberdade da peste em que, passo a passo, de degrau em degrau, o agonizante infla sua personagem, em que o ser vivo torna-se aos poucos um ser grandioso e expandido.
 

Pode-se dizer agora que toda verdadeira liberdade é negra e se confunde infalivelmente com a liberdade do sexo, que também é negra, sem que se saiba muito bem por quê. Pois há muito tempo o Eros platônico, o sentido sexual, a liberdade de vida, desapareceu sob o revestimento escuro da Libido, que se identifica com tudo o que há de sujo, de abjeto, de infame no fato de viver, de se precipitar com um vigor natural e impuro, com uma força sempre renovada, na direção da vida.
 

É assim que todos os grandes Mitos são negros e é assim que não se pode imaginar fora de uma atmosfera de carnificina, tortura, de sangue vertido, todas as magníficas Fábulas que narram para as multidões a primeira divisão sexual e a primeira carnificina de espécies que surgem na criação.


O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação. Desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas possibilidades e essas forças são negras a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida. 

 

Não consideramos que a vida tal como é e tal como a fizeram para nós seja razão para exaltações. Parece que através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente. 

 

Pode ser que o veneno do teatro lançado no corpo social o desagregue, como diz santo Agostinho, mas então ele o faz como uma peste, um flagelo vingador, uma epidemia salvadora na qual épocas crédulas pretenderam ver o dedo de Deus e que nada mais é do que a aplicação de uma lei da natureza em que todo gesto é compensado por outro gesto e toda ação por sua reação. 

 

O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o teatro é um mal
porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja pois, levando os homens a se verem como
são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam.
 

E a questão que agora se coloca é saber se neste mundo em declínio, que está se suicidando sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior do teatro, que devolverá a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais.

* Cipião Nasica, grande pontífice, que ordenou que os teatros de Roma fossem nivelados e seus porões aterrados.

Texto: O teatro e a peste, In.

Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo.

Tradução Teixeira Coelho; 3ª Ed - São Paulo: Martins Fontes (2006). 

bottom of page